Mistério captura o espectador em histórias e silêncios – Opinião sobre os filmes Cais e Ariel

Mistério captura o espectador em histórias e silêncios – Opinião sobre os filmes Cais e Ariel

Nossa opinião sobre os filmes Ariel e Cais, do festival internacional Olhar de Cinema em Curitiba

 

Participei de um debate sobre o filme nacional Cais, que estava competindo no festival de cinema. A conversa com a equipe do filme trouxe à tona assuntos como ancestralidade, percepção do tempo, luto e ciclo da vida.

No caso de Cais, quem traz mistério para a produção não é a história, mas sim o estranhamento provocado por imagens nem sempre claras para o espectador, a quase completa ausência de narração e o silêncio, deliberadamente escolhidos para provocar uma outra percepção do tempo ao assistir ao filme.

O filme não tem um roteiro definido. Pode ser considerado autobiográfico: traz cenas da vida da diretora Safira Moreira com seu filho pequeno, cenas de seu pai trabalhando como ourives e muitas referências à mãe da diretora, que faleceu durante o processo de produção.

A montagem foi tendo seu propósito alterado ao longo do tempo, acompanhando o momento da vida da diretora. A transmutação pela qual passou o filme (e a vida) também é retratada em cenas variadas, como no processo de fabricação da farinha, onde a mandioca é transmutada até chegar no novo formato, ou na fabricação do dendê.

Debate com a equipe de Cais (foto: Carol Moreno)

 

A comida, aliás, pode ser considerada uma linha condutora na sequência de imagens – além da farinha e do dendê, ela aparece em destaque nas oferendas do candomblé e também de forma afetiva, na culinária de “mainha” preparando o vatapá.

Não é fácil captar toda essa essência, já que o filme não apresenta uma linha narrativa nem uma sequência lógica. Mas é uma montagem sensível, com fotografia lindíssima e que desperta a curiosidade de quem assiste – seja sobre a noção do tempo, sobre como lidamos com a morte e ciclo da vida, ou até sobre os mistérios do candomblé e a riqueza da cultura ancestral baiana. 

> O filme Cais, dirigido por Safira Moreira, ganhou três dos principais prêmios do festival Olhar de Cinema: Prêmio de Melhor Filme, Melhor Longa pelo Voto do Público e Prêmio da Crítica Abraccine.

Cena de Cais (reprodução)

 

Mistério no absurdo

O filme Ariel, do diretor Lois Patiño, caminha em sentido oposto: traz uma história cheia de sentidos, escancarados ou ocultos, viajando pelo teatro do absurdo.

A história de Ariel é sobre uma atriz que viaja para uma ilha no Açores para encontrar a trupe de teatro com quem vai encenar Tempestade, uma peça de Shakespeare. O estranhamento acontece já no ferry, onde todos os passageiros adormecem simultaneamente, e ao chegar à ilha, onde ela perde contato com o mundo externo e onde todas as pessoas que encontra vivem suas vidas interpretando papéis de Shakespeare.

Capa de Ariel

 

O conceito de teatro do absurdo é explorado com maestria pelo diretor, que apresenta aos poucos os personagens shakespeareanos através de donas de casa fazendo compras no mercado, ou funcionários de um hotel, que se vestem com trajes de época e conversam entre si como se estivessem no meio de uma encenação de teatro.

O espectador é capturado desde o início do filme, neste grande mistério do que está acontecendo na ilha. O diretor brinca também com metalinguagem, ao trazer personagens que questionam o papel do criador, e buscam encontrar o livro de Shakespeare para se tornarem eles mesmos o autor da história e poderem mudar suas falas e atitudes, que repetem diariamente.

O papel da Ariel, personagem de Shakespeare que representa o espírito do ar mas que também pode se transformar em outros elementos da natureza, é central na montagem. Ariel é capaz de sussurar ideias na cabeça das pessoas, gerando um encantamento e as induzindo a fazer o que deseja, mas não é um espírito livre – vive sob os comandos de Próspero, seu amo, que sempre promete libertá-la, mas em vão.

O papel se divide entre a atriz que acaba de chegar à ilha e a atriz que já vive seus dias interpretando Ariel, diariamente, da aurora ao crepúsculo – sempre em busca de liberdade, mas fatalmente repetindo suas obrigações, dia após dia. Fadada a recomeçar a atuação da personagem ao raiar do sol, a cada vez que o livro é novamente aberto, ou o filme assistido do início.

Através dessa história aparentemente sem pé nem cabeça, o filme nos prende e nos faz questionar nosso papel no mundo, os personagens que interpretamos ao longo da vida, a busca por uma forma mais livre de viver e os mistérios que envolvem o comportamento humano.

> O filme Ariel, uma produção de Espanha e Portugal dirigida por Lois Patiño, competiu na Mostra Internacional e levou o Prêmio Especial do Júri

Lois Patiño, diretor de Ariel 

 

Filmes na Mostra Competitiva

Os filmes Ariel e Cais participaram do festival Olhar de Cinema nas mostras competitivas, internacional e nacional, respectivamente, e serão exibidos novamente no Cine Passeio e na Cinemateca no dia 19/jun.

Mais informações em https://www.olhardecinema.com.br/filmes/

Exibição de filme no Museu Oscar Niemeyer (foto: Carol Moreno)